terça-feira, outubro 31, 2006

monte cara


(Mindelo.Ilha de S.Vicente.Cabo Verde.2005)

SILÊNCIO

Um gato escuta o sol, por cima
os pássaros são sombras a voarem.

sábado, outubro 28, 2006

barcos parados na noite profunda


(Rio Preguiças.Maranhão.Brasil.2006)

(a meu pai)

Nasci a 13 de Maio, a uma sexta-feira, e o meu pai partiu para outro mundo num dia 14 de Maio. Tenho a impressão, que apesar de moribundo, aguentou aquilo para, mais uma vez, não me fazer qualquer desfeita. O meu pai era assim: sensível ás pessoas e muito atento ao seu filho. Também lhe agradeço este último gesto a selar toda uma vida de dedicação e amor, como pai, amigo e ser humano.
Ontem, ás tantas da noite, quando me tocaram á porta tão tarde, fiquei um pouco intrigado. Ia já de braço em riste para o puxador, quando vejo o meu pai já dentro de casa, com o seu ar circunspecto e um sorriso levemente matreiro de quem vê alguém com uma cara de espanto sem solução á vista.”Então Gé, como vai isso?”Falou-me no mesmo tom e com as mesmas palavras que ouvi N vezes, como quem pergunta:” Então filho, como vai essa Vida”.”Tá indo bem” disse-lhe enquanto o olhava nos olhos para confirmar o que dissera. Lembrei-me que muitas vezes, quando ele estava deste lado, eu nem sempre era mesmo sincero, embora a resposta fosse sempre a mesma, mas depois percebia que não o tinha convencido.”Entre, sente-se ali no sofá. Toma alguma coisa?”. Não, bem-hajas, agora não preciso de tomar nada, mas vamos lá até ao sofá”. Sentámo-nos lado a lado, enquanto eu o olhava de soslaio verificando que continuava com os seus gestos pousados a reflectirem um sossego interior muito raro, nos dias que correm. A conversa facilmente desembocou, como não poderia deixar de ser, para os lados da Vida e da Morte. Demorámo-nos entre frases, sorrisos e jeitos só nossos de falar das coisas que só as palavras permitem. Depois, quando o dia já se começava a misturar na sala e a realidade daquilo tudo parecia demasiado e também já sentíamos ter esgotado o que nos ia na alma, o meu pai, pôs-me uma mão no ombro e levantou-se com um ar vagamente satisfeito, “pareces cansado, não estás a precisar de ir dormir?”. “É, talvez sejam horas”, e levantei-me também dando-lhe uma palmada afectuosa nas costas. Dirigi-me para a porta e quando me voltei para nos despedirmos mesmo, eu estava ali sozinho.



Gaia - 28.29-05-2006

segunda-feira, outubro 23, 2006

paisagem árabe



(DESENHO.Técnica: Caneta Rotring s/ Papel.48X37)

FORA DO COMPASSO

Dias abundantes na boca
pelos segredos das mãos
ao rebentarem magnéticas
os nomes à-volta.
Inspira-as a cegueira de uma luz
sem fim, como que vencida
pela eternidade.
Não é carne nem é memória
esta respiração. Por ela vivemos
pendurados na pergunta
que respira pelos orifícios da pele
que sorve as queimaduras dos astros.
Talvez os deuses conheçam a intenção da água
dentro dos corpos. A água fechada
ao fazer um nó às portas dos olhos.
Estrela ou paisagem, quanta claridade
em redor dos dedos a mexerem dentro
as oficinas da Terra
os lugares abraçados pelo tacto da fala.

(in, "As Mãos e as Margens".Ed. Limiar.1991.)

domingo, outubro 22, 2006

farol


(PINTURA.Guache s/ Cartão.48X62)

O JOGO

Do jogo vêm as mãos caçadoras
a seta incerta no coração da sorte
corpo tangente com um lado intocável
e por mais que os corpos se ousem
o desafio é sempre a veia inicial. O risco.
O acaso. A ilusória aparência de um encontro
sem testemunhas evidentes.

(in, "O Triângulo de Ouro".1988)

(Visões Retrospectivas)

sábado, outubro 21, 2006

a ponte


(DESENHO.Técnica:Caneta Rotring e guache s/ Papel.38X34)

sexta-feira, outubro 20, 2006

ELIPSE PARA OS OLHOS

Em cada gesto
um ofício sem idade
dizendo os corpos em sobressalto
entre as coisas circulares do tempo.

E quem já esteve em muitos lugares
principia e acaba olhando o Mundo
pelas suas formas
e aí morre qualquer hábito
e a vastidão da Terra com sementes
há memória da Vida
e das coisas que acontecem.

(in, "O Triângulo de Ouro",1988)

quinta-feira, outubro 19, 2006



(Posoidon.Turquia.2002.)

Vi o mármore abandonado ao martelo

a música a cair em si

e depois

as formas dos deuses.

Os olhos sopravam uma luz macia.

(Visões Retrospectivas)

sábado, outubro 14, 2006

ao-pôr-do-sol


(Foto.Arte digital.2006)

AO PÔR-DO-SOL

Quando cheguei á praia era ainda o pôr-do-sol. Sentei-me a escutar os sons á-volta. Uma menina, muito silêncio e beleza sozinha, sentou-se perto de mim e sem me olhar, olhou para onde estava o meu estar. Demorámos a cruzar o olhar. E continuámos a olhar para o mar. O sol desceu até se afundar com um silêncio apenas. Continuámos a olhar. Talvez as ondas que cresciam até aos nossos pés, talvez o azul do céu que se tornava mais sonolento, talvez os silêncios de tudo em ritmos cadenciados de encontro ás almas solitários de cada um.
Depois, já os lençóis da noite eram muitos e o mundo existia com um peso maior, levantámo-nos ao mesmo tempo, sorrimos o mesmo sorriso ligado, e cada um foi devagar continuar a cumprir o seu destino.



Gaia – 26-08-2006
(São Luís.Maranhão.Brasil.2006.)

quinta-feira, outubro 12, 2006

o sono


(PINTURA. Guache s/ Cartão. 23X30 cm)

domingo, outubro 08, 2006

(Mauro, O Poeta da Ilha)

Arrastava mais um pé do que outro e eu reparei no seu ar luminoso abrir airosamente a noite. Ia a passar perto do meu lugar e eu senti que podíamos trocar alguns trocos de luz. Convidei-o a sentar-se ali, por baixo da grande árvore nocturna. Vi o seu olhar a inclinar-se para o meu copo e perguntei-lhe o que bebia. Não tardou a abrirem-se as nossas portas, uma de cada vez, e cada um no seu lugar mais íntimo.
Era um poeta e eu disse-lhe que também era um aprendiz de poeta.( Ele lembrou-se deste pormenor passado uns dias, quando à sombra de outra árvore mais diurna, voltámos a trocar meia-dúzia de luzes pessoais.)
Ele arrastava a perna quando andava, mas falava sem arrastar nenhuma das suas asas. Aí, ele crescia em voos cheios de altura e distância e ás vezes, descia um pouco, para me recitar um poema seu, que parecia ler no meu rosto. Eram sempre feitos de simplicidade e lonjura e eu ficava mais pequeno a escutá-lo, a olhá-lo com todo o orgulho do mundo, pois já éramos amigos.
Hoje, vejo-o levantar a noite da sua ilha, livre como sempre, feliz e a beber alegremente toda a escuridão que há na sua vida de poeta.



(São Luís.Maranhão.Brasil.2006.)
Gaia – 27.28-08-06

pelaestradafora

sábado, outubro 07, 2006

(Meiri)

Os lençóis negros da noite desciam, tombavam, adormeciam colados uns aos outros, como folhas que se voltam juntar.
Depois de várias voltas por N ruas da cidade pareceu-me que era por aquelas bandas que a festa começava a fervilhar. Num passeio de uma rua desamparada, encontrei um banco á minha espera e pedi mesmo ali á Sr.ª da rolote uma cerveja bem gelada. Recostei-me, costas com parede e vice-versa, e pus-me a pastar vacarosamente o olhar á volta. Havia de tudo o que era gente, jovens em grupos soltos e felizmente assim, pessoas solitárias, alguns com ar de quem procura desespiradamente libertarem-se daquilo, outros já mais ancorados, havia casais apaixonados que nem pássaros azurumbados, havia também mulheres de todas as cores, e as mais belas prendiam-me o olhar por mais tempo e depois, desapareciam pelas portas dos bares de onde soltavam canções ás molhadas, e de quando em quando muitas vezes, tudo aquilo junto dava-me sede para outra cerveja.
Por cima de mim, a escuridão salpicada de estrelas e uma clara sensação de vastidão completamente alheada.
A incerta altura, uma menina sozinha, por dentro e por fora, aproximou-se de mim, de cerveja na mão e sentou-se a meu lado. Depois continuou calada, ancorada e eu também não de cerveja na mão. Encostou a sua tristeza desarmada no meu ombro abrigada e eu comecei a falar. As minhas palavras eram peixes criados ali, para o seu mar. Sem darmos por isso, pusemos os olhos nos olhos e começámo-nos a beijar. O seu fundo sereno tinha outro olhar. E uma paixão apareceu naquele lugar. Claro que o dia nasceu sem nos avisar.



Gaia.27-05-2006
( Fortaleza.Brasil.2003.)

viajante



(Lençóis do Maranhão.Brasil.2006.)

MO(NU)MENTO DA VIDA

A varanda é branca com o sol ainda por cima e depois há o azul-cobalto do mar e ainda depois, há muitas árvores emaranhadas nos seus verdes a erguerem os olhos para a beleza de um imenso céu, que só, sei lá quanto tempo depois felizmente, acabei por cair em mim.
Aqui ao lado, as folhas das palmeiras continuam penteando a aragem que corre atrás de si corre e por vezes, alarga-se até á mesa e leva-me as folhas e as palavras e que me importa?
Na rua as pessoas passeiam-se devagar no meio do tempo. Saboreiam os encontros, param aqui e acolá, trocam poucas frases, poucos gestos, coisas simples, como um sorriso cúmplice na caminhada, já é tanto.
Um pescador idoso de boné vermelho e corpo parado, está esquecido ou estará a lembrar-se, a olharolhar o mar como se lesse um texto.
Há em tudo uma paz muito possível aproximando-se provavelmente a um sopro distraído de deus.




(Recife.Pernambuco.Brasil.2004.)



á varanda



















(São Luis. Maranhão.Brasil.2006.)

FOI ALGURES JÁ NEM ME LEMBRO

Mesmo no centro da noite: música, corpos a dançarem aluados de todo, com o brilho do sol ainda acordado na pele e os cheiros de África todos espalhados á toa.
Foi algures, já nem me lembro, e eu sentia-me muito vivo de dentro para fora, como um farol aberto ao Mundo. Tudo em mim, tinha um sentido que eu nem pensava, deixava-me atravessar pelos dons que a vida me dava. Quando a Vi, parei:
Alguém mesmo ali á minha frente, dançava no ar, com a alegria nos olhos de quem se sente livre e cheia de luz para emprestar. Era uma menina negra com aquele jeito despojado e solto de quem nada tem a perder por se sentir gente, e, meu deus, era tão bela na sua juventude lisa, pelo corpo a baixo até ás asas dos pés.
Aproximei-me, qual andarilho dançante sem eira nem beira, á procura no fundo de um lugar macio para esquecer a cabeça ao fim da noite, mas no meu jeito cativo de escolher uma flor.
Foi breve a espera dos meus braços á volta daquela cintura, as minhas mãos a espalharem as gotas muitas de suor pelas suas costas a baixo e as bocas cheias de sede ambas sem dono.
E logo a noite teve um outro sentido e todas as estrelas dos universos foram poucas para chamarem o novo dia que felizmente demorou a chegar.


Gaia – 24.25-05-2006
(Fortaleza. Brasil.2003.)

enquantohouverumaluz



















(foto.art.digital.-Gaia.2006.)